O futebol argentino está de luto. Miguel Ángel Russo, técnico do Boca Juniors, morreu nesta quarta-feira, 8 de outubro de 2025, aos 69 anos, em decorrência de complicações de saúde relacionadas ao câncer de bexiga e de próstata, diagnosticados em 2017.
Um dos nomes mais respeitados e queridos do país, Russo deixou uma marca profunda por onde passou — especialmente em Boca Juniors, Rosario Central e Estudiantes de La Plata, clubes onde conquistou títulos, idolatria e devoção.
Russo lutou bravamente contra a doença, sem nunca se afastar completamente do futebol, a paixão que guiou toda sua vida, e seguiu trabalhando até os últimos dias. Embora nas últimas semanas já não conseguisse comandar a equipe à beira do campo, ele permaneceu oficialmente como técnico do Boca, clube ao qual deu sua última Copa Libertadores, em 2007, o ponto mais alto de sua carreira.
O treinador havia retornado ao Boca em junho, após deixar o San Lorenzo, atendendo ao chamado de Juan Román Riquelme, presidente do clube. A ideia era prepará-lo para o Mundial de Clubes, mas as constantes ausências de Russo por motivos de saúde se tornaram mais frequentes nos últimos meses.
Figura admirada além das cores azul e ouro, Miguel Ángel Russo será lembrado como um dos grandes personagens do futebol argentino — querido, vencedor e exemplo de entrega até o fim.

@BocaJrsOficial
Jogador desde sempre, Miguel Ángel Russo começou a trilhar seu caminho no futebol ainda em La Plata, nas categorias de base do Estudiantes, clube de sua cidade e onde passaria toda a carreira como atleta profissional. Costumava dizer que, se não tivesse calçado as chuteiras, seria advogado ou contador, influenciado pelo ambiente universitário da cidade.
Foram 14 anos como jogador, sempre fiel à camisa Pincharrata, com dois títulos argentinos — o Metropolitano de 1982 e o Nacional de 1983. Volante de presença imponente, chegou a integrar o grupo da seleção argentina nas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1986, mas uma grave lesão no joelho o tirou da convocação final. Carlos Bilardo optou por deixá-lo fora da lista, decisão que o próprio Russo entendeu com o tempo:
“Carlos me disse que eu ia odiá-lo e xingá-lo, mas que um dia, quando fosse técnico, entenderia. E ele tinha razão.”
Curiosamente, sua presença era tão certa que chegou a aparecer no álbum oficial da Copa do Mundo do México. Mesmo frustrado à época, guardou uma frase que repetiria pelo resto da vida para encerrar qualquer polêmica: “São decisões.”
E foram muitas — ao longo de mais de 30 anos quase ininterruptos como técnico.
No fim dos anos 1980, começou sua carreira de treinador no futebol de acesso e rapidamente se destacou. Levou o Lanús de volta à Primeira Divisão em 1992, e o Estudiantes, em 1995. Depois, comandou a Universidad de Chile, chegando às semifinais da Libertadores de 1996.
Nos anos seguintes, viveu altos e baixos — classificou o Rosario Central para a Copa Conmebol em 1998 e caiu com o Los Andes em 2001 —, mas a partir de 2003 consolidou-se entre os grandes. Foi campeão do Clausura 2005 com o Vélez Sarsfield, levou o clube às semifinais da Libertadores de 2006 e, assim, atraiu o interesse do Boca Juniors, que buscava um novo técnico após a saída de Ricardo La Volpe.
No primeiro semestre de 2007, Russo viveu o auge da carreira: comandou o Boca na conquista da Copa Libertadores, com Riquelme em seu melhor momento, numa campanha inesquecível que terminou com um 5 a 0 agregado sobre o Grêmio — a maior diferença já registrada em uma final.
Ainda assim, deixou o clube em dezembro do mesmo ano, após perder a final do Mundial de Clubes para o Milan (4 a 2) — reflexo da altíssima exigência daquele Boca pós-Basile.
Seguiram-se passagens por San Lorenzo, Racing, Estudiantes e um retorno marcante ao Rosario Central, com quem voltou a subir à elite em 2013, demonstrando novamente sua vocação para reconstruir equipes.
Entre 2017 e 2022, viveu sua experiência mais longa no exterior, com passagens por Millonarios (Colômbia), Alianza Lima (Peru) e Cerro Porteño (Paraguai). No Millonarios, conquistou o Campeonato Colombiano e a Superliga, mas também enfrentou o período mais duro da vida: foi diagnosticado com câncer de bexiga e depois com um tumor na próstata, que chegou a afetar os pulmões.
Mesmo assim, Russo nunca deixou de trabalhar — e venceu o torneio colombiano enquanto ainda fazia sessões de quimioterapia.
“O futebol me ajudou a não pensar no câncer”, disse certa vez.
“Respeitei os médicos e fui melhorando pouco a pouco. A cabeça é a chave de tudo.”
Ao se despedir do Millonarios, não conteve a emoção:
“A torcida me respeitou muito. E meu estado era deplorável, com sessões de quimioterapia duríssimas. Mesmo assim, tentei ajudar como pude, com doações, com presença. Ser uma figura pública me fez perceber que posso mostrar às pessoas que é possível continuar.”
Russo foi, até o fim, o retrato do homem apaixonado pelo futebol — discreto, obstinado e de um respeito raro no ambiente competitivo do esporte.

A quimioterapia e duas cirurgias permitiram que Miguel Ángel Russo continuasse lutando — e, eventualmente, voltasse ao Boca Juniors, onde conquistou mais um título marcante: a Superliga 2019-2020, vencida de forma dramática sobre o River Plate na última rodada, virando a disputa nos instantes finais.
Poucos meses depois, Russo também levantou a Copa da Liga Profissional (rebatizada como Copa Maradona). Os maus resultados no início de 2021 levaram à sua saída, mas o técnico voltaria a celebrar novamente. Após uma passagem pelo Al-Nassr, da Arábia Saudita, retornou ao Rosario Central pela quarta vez — em sua quinta passagem pelo clube — e, enfim, conquistou o primeiro título de elite com o Canalla: a Copa da Liga 2023, o primeiro troféu de Primeira Divisão do clube em 36 anos (a Copa Argentina de 2018 não é considerada título de liga).
Tanto no Boca quanto no Central, Russo virou sinônimo de vitórias em clássicos — façanha rara em dois dos duelos mais intensos do país. Com o Xeneize, venceu os dois confrontos de mata-mata contra o River em 2020 e 2021, quebrando o trauma das derrotas recentes em finais e semifinais da Libertadores. No Rosario Central, foi ainda mais impressionante: disputou 12 clássicos contra o Newell’s Old Boys e nunca perdeu — foram sete vitórias e cinco empates.
Com seu tom sereno, declarações sempre contidas e respeitosas — às vezes até vistas com humor pela repetição —, Russo manteve por mais de 40 anos de carreira uma reputação de discrição, profissionalismo e liderança tranquila, características que o transformaram em uma figura admirada por colegas, jogadores e torcedores.
O futebol argentino se despede de um campeão e símbolo de dignidade, cujo legado — dentro e fora de campo — seguirá vivo para sempre.